segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma História em Comum - Parte II

            Serumano não compreendia o que estava acontecendo. Não acreditava na situação em que se encontrava – tão crítica, tão triste. Ele pensava em tudo que havia feito durante sua vida e não encontrava respostas. Em nenhum momento Serumano agiu com o intuito de fazer mal para sua família, para si mesmo, no entanto o fizera. Isso o enchia com uma enorme culpa e uma sensação de incapacidade...

            Demônio - Serumano, caia na real meu amigo, você sempre foi egoísta, sempre foi maldoso, um grande aproveitador... Não tente se convencer do contrário. Você sabe, e eu sei também: você está muito mais perto de mim do que de um anjo ou qualquer coisa pura. Você sempre soube da sua natureza tirana; sempre esteve intrínseco na sua existência. Não venha me dizer que não sabia do preço; não venha me dizer que você desconhece o seu destino; nós dois sabemos muito bem o que você merece e como essa história termina...

            Anjo – Serumano, é muito fácil escutar o que é supostamente inevitável e conformar-se. No entanto deixe que eu faça minha análise. Você é na verdade um ser muito ingênuo e muito equivocado. Acredita que não tem controle do seu destino; acredita em erro/culpa/punição porque você quer. Sofre enquanto o sofrimento é necessário para o seu aprendizado. Se existem demônios saiba que é somente para que existam anjos...

            Demônio – Cale a boca! Uma intervenção se faz necessária. Os anjos são parte dos sonhos. Desde quando existem sonhos? Nós sabemos que eles não passam de invenções suas para escapar da merda que fez! Não me venha com esse papo clichê de controle do seu próprio destino. Ora faça um filme se quiser falar sobre essas coisas, mas a realidade está na sua cara, nua, crua e inegável. Você destruiu tudo o que os seus pais lhe deram por puro egocentrismo, seu idiota. E agora que é hora de pagar pela sua arrogância você quer ouvir o que lhe é mais conveniente como sempre fez!
           
            Anjo – Esse discurso é cíclico e genérico. Quero levá-lo à raiz da realidade em que você se encontra, Serumano. Você chegou onde está sozinho; pode sair da mesma forma. Será que você percebe o que está acontecendo? Não é nada além da evolução natural. Entretanto você está, como sempre esteve, à mercê da sua própria compreensão da realidade. Perceba que todo o momento é o agora e que, se algo não lhe agrada agora, haverá sempre o futuro – que nada mais é que o agora se protraindo no tempo: a eternidade do agora gera a idéia de futuro quando abrigada pela concepção de tempo – portanto você tem a eternidade para tomar as decisões certas. Isso não deve lhe servir de incentivo para continuar tomando decisões equivocadas; você não pode ter medo de acertar; não pode ter medo de abandonar seu histórico de equívocos; não pode ter medo de estar errado e de se desapegar da falsa identidade que você construiu, do seu orgulho infundado... Não que o orgulho seja algo negativo, mas ele perfaz uma linha extremamente tênue entre a arrogância e a autocomiseração. Basta humildade para você perceber sua arrogância, e coragem para livra-se da auto-indulgência. Falta sabedoria para você equilibrar-se. A questão é: você está preparado para enfrentar seus erros? Você ainda tem dúvidas sobre sua dignidade? Sobre seu direito de ser imperfeito e de reparar sua imperfectibilidade?

            Serumano – Eu não sei! Não sei a quem eu pertenço, não sei quem eu represento, ou, qual de vocês me representa. Quem sou eu afinal? Não consigo deixar de ver coerência nos dois. Anjo, você é tão sublime em suas palavras, tão sedutor. Enche-me de esperança, ouvi-lo. Sinto-me renovado, cheio de energias, um estado de bem aventurança toma conta de mim e parece que tudo isso é real e possível. Mas ao mesmo tempo você parece realmente um sonho. Tanto você quanto o Demônio concordam sobre a minha ingenuidade. Não posso mais ser um sonhador, preciso por meus pés no chão, e você me oferece tanto pelo único preço da minha fé. Se existe uma linha tênue entre arrogância e autocomiseração, também existe entre fé e a ingenuidade. Por outro lado o Demônio parece-me tão rígido. Essa rigidez me assusta, mas parece justa. Não posso acreditar que depois de tudo o que fiz não terei de arcar com nada, nem essa idéia me agrada. Eu olho pra dentro de mim e vejo um talho que me parte ao meio. E eu não sei se eu tenho capacidade para desentranhar-me desta situação.

            Serumano começa então a chorar e agonizar na mais profunda sensação de desgosto que se pode experimentar. Uma vontade imensa de simplesmente deixar de existir toma conta dele. A vontade absurda torna-se uma necessidade. Sua necessidade torna-se realidade. De repente Serumano percebe que não está mais em lugar algum. Não sente mais nada. Somente é convidado para sentar-se e assistir um grande filme da sua vida. Uma Voz Unificada cinge-o como narradora. Por acaso aquele ambiente deixa de ser hostil e passa a confortá-lo.

            Serumano assiste sua história pela primeira vez com impessoalidade e tranqüilidade. Como se estivesse vendo aqueles filmes gravados quando tínhamos 3 anos, onde aparecemos puros, brincando e/ou chorando... Tudo com muita naturalidade. Parece que aquela criança era outra pessoa. Ele permite olhar-se com compaixão; sem julgamentos. O filme vai evoluindo enquanto Serumano vai percebendo exatamente como se deslumbrou com sua mente, como se afastou dos pais, como passou a ser extremamente arrogante... Percebe com muita nitidez que: quanto mais se identificava com sua mente, mais distante estava dos pais e seus conhecimentos; da sua Natureza, do seu Universo, do seu irmão. Ele acreditava ter mérito por controlar a força dos pais; louvava a si mesmo pelo poder da concepção. Louvou tanto a si - tornou-se megalomaníaco. Achou que seria melhor que os pais passando a conceber coisas artificiais. (A concepção é um poder extremamente deslumbrante mesmo, não é?).

             Serumano criava seu mundo em sua mente e o reproduzia no Mundo real. Seu grande equívoco foi não perceber que ele não era o produto da sua mente, mas sim sua mente que era seu produto. A artificialidade de suas criações era justamente o desrespeito de Serumano em relação à sua origem. Ele havia cortado seus laços paternais, e no lugar disso: a idolatria a si mesmo. Como reflexo desta falsa identidade as suas concepções se mostraram também artificiais. A cidade que havia construído nascia morta e silenciosa. Prédios e prédios construídos uns sobres os outros o circundavam não permitindo que ele visse Natureza (fucking bricks on the wall!). O céu poluído cheio de luzes que ofuscavam as luzes das estrelas não o permitia entrar em contato com Universo. A rotina na cidade era robótica, automática, sintética, anacrônica, infeliz... Sua relação com seu irmão ia de mal a pior...
                       
            A voz que sutilmente narrava o filme de forma extremamente afável era quase imperceptível. Serumano começa a reconhecê-la. Parecia uma voz de memórias distantes. E, ao passo que Serumano prestava atenção na voz, uma entidade começava a  se materializar a sua frente como uma grande projeção da presença que sempre sentira atrás dos olhos, na região da nuca. De repente ele reconhece quem sempre esteve ali: era seu Pai. Universo então se pronuncia diretamente a Serumano:

            Universo – Meu filho, sei sobre os seus anseios. Sim, sou eu que estou aqui...

            Serumano – Pai?! Por que você me abandonou?! Por onde esteve todo este tempo?

            Universo – Eu sempre estive presente dentro de você, a minha essência una nunca deixou de existir em nós dois...

            Serumano – Mas então por que o Senhor deixou que eu chegasse a tal ponto? Se o Senhor existe dentro de mim, o que foi, ou, quem são o Anjo e Demônio?

            Universo – Eles são a representação da sua compreensão sobre a realidade meu filho. A forma que você escolheu para aprender o que eu sempre tentei ensiná-lo. Nenhum dos dois existe entre mim e você na verdade, somente representam as possibilidades de manifestação daquilo que É. As diversas vozes da consciência ecoando em você. O paradoxo do Uno. O meu maior mistério...

            Serumano – Não entendo muito bem o que o Senhor quer me dizer... Afinal, o que ainda está ao meu alcance?

            Universo – O Salto Quântico!

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