quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ânsia!

Por: Ramiro Valdez         


          “AHHHHHHHH!!!”. Podia-se ouvir o grito do outro lado da cidade. O tom e o timbre acusavam um desespero sobre-humano. Antes disso, X era igual a todos os outros homens, tinha uma rotina e uma vidinha daquelas, cuja previsibilidade não se arrisca. X não botaria tudo a perder - “felicidade”, estabilidade, etc: valores paradigmáticos sobre os quais apoiamos todo o peso de nossas vidas - com reflexões mais profundas a respeito de seu ser. X não lia, não divagava, não pensava por si. X vendia televisões e eletrodomésticos. Logo logo, seria promovido a subgerente de vendas. X era um batalhador, “trabalha desde os dezesseis anos de idade”, dizia sua mãe. X era gentil, humilde, querido por todos. Numa manhã de segunda-feira fria, realmente fria e cinza, X encaminhava-se à labuta diária, quando foi surpreendido por um moleque de rua - daqueles que passam fome enquanto as pessoas vagam pelas ruas, passam fome enquanto os policiais lhes espancam e ameaçam , passam fome enquanto estão comendo um pão mofado do lixo na frente daquele condomínio de luxo. O moleque - a cara da miséria, os dedos da subnutrição, os olhos da vergonha e humilhação, o corpo: máquina do sofrimento – lhe pediu um trocado, suplicante. X tinha uma opinião bem formada quanto a esmolas: “Não tenho. Vai trabalhar, moleque.”. O garoto, com aqueles olhos opacos, particularmente sombrios, sem mais anseios de brilhar algum dia, nem mesmo com lágrimas de melancolia, fitou por um longo curto instante os olhos de X e lhe disse: “Não é bem assim que funciona, não, senhor.”.
          Algo explodiu dentro de X, ao menos foi o que ele sentiu. Olhou em volta: avó levando a neta para a escola; homem de terno caro falando no celular; mendigo dormindo debaixo da marquise de uma loja; casal andando e brigando e gesticulando; pessoas fazendo exatamente o que deveriam estar fazendo; faces segunda-feirinas surgindo aleatoriamente, numa rapsódia alucinada, voltando a rodar as engrenagens da Grande Máquina.  X, o velho X, isto era o que começava a explodir – melhor, implodir –, causando destroços e uma espessa nuvem de fumaça asfixiante nas entranhas daquele ser. X não sabia, mas estava sendo envolvido pela melodia pesada de uma epifania. Tomou consciência do que estava havendo ali, naquela rapsódia: marionetes marchando rumo ao bem da nação; uma só voz, um só objetivo: “Progresso”. X não era mais X. Não teria como ir trabalhar agora, sentia-se sufocado, sentia que poderia cair morto, ali mesmo, entre as engrenagens, virar guisado de X. Deu amassados dez reais ao garoto, apontou em direção oposta à loja em que trabalhava, e foi. Vagando, percebeu a podridão do castelo de cartas em que vivia, tão frágil e instável – pois bastava a base querer ruir – que só a sutil manipulação e manutenção da ordem dos naipes e números o mantinha arrasadora e imponentemente erigido. Um, dois, três , quatro, cinco; seis, sete, oito, nove, dez, valete, rainha; rei e ás; corações, paus, espadas, ouros - ouro espada sangue; por fim, manuseando e vigiando, a mão que joga. A despeito de sua individualidade, unicidade, havia sido um sete de corações e rolamento de engrenagem por quase trinta anos. Isso o fez sentir um toque frio percorrer sua espinha.
          X andara sem rumo por horas. Estava lúcido como nunca antes havia ficado. Viu a cidade com outros olhos, olhos de quem vê. Assistia agora o espetáculo das árvores sendo acariciadas pelo vento, ululando, como que agradecendo o verde vibrante que pousa sobre elas; as pombas dançando desconjuntadamente, como se estivessem em alguma espécie de transe divino. “As pombas dançam porque querem comer”, pensou.  Começou a se acalmar, deparou-se com uma praça. Sentou-se embaixo de uma pequena árvore, a qual formava algo como uma redoma em volta de seu corpo, protegendo-o, lhe dizendo: “Vai em frente, percorre teu ser.” Fechara os olhos. Escuro. Claro. Claro! Começou: “Se não sou aquele que era, então quem sou eu? Sou? Sim… mas, há algo me faça um eu? Se sim, que é esse algo? Se não, qual o sentido da merda toda?” Questões existenciais brotavam incessantemente da mente para a mente de X, como golfinhos que saltam e voltam a mergulhar no amplo oceano de sua psique. Exaurido, sentira a necessidade de reivindicar seu tempo perdido, ir atrás de sua vida. Desesperado, percebeu a impossibilidade de viver algo que não existe materialmente – “o passado só existe em minha cabeça, e mesmo assim ele é fragmentado e desfocado. Diluído na não-existência!”. X, então, gritou. “AHHHHHHHH!!!”; era a ânsia da alma de sair do corpo. Gritara em vão, a alma chegou até a boca e voltou.

5 comentários:

  1. haaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa, porra meu, so obrigado a comentar sempre no próprio blog mas esse texto não pode existir sem manifestações, hahahahhhaha
    é muito bom, muito bom texto !!

    ResponderExcluir
  2. Bem vindo à vida, X.
    Esse foi sinistro! Parabéns pelo texto, bem escrito, claro e coerente; bom para sacudir as pessoas. Não parem de escrever!

    ResponderExcluir
  3. Valeu meu irmão, muito obrigado, o texto é do Ramiro mas vão ai os agradecimentos sinceros

    ResponderExcluir