sábado, 2 de outubro de 2010

Reflexões sobre o Direito da Loucura

Por: Pedro Bigolin

Partindo do pressuposto de que já não basta o polêmico conceito de inimputabilidade, cabe, consequentemente a nós fazermos a seguinte indagação: o que é loucura? Ou ainda, o que é ser normal? O conceito de loucura não é unívoco. Não se pode admitir que exista um conceito de loucura vagando pelo mundo platônico das idéias, aos poucos sendo desvendado pela ciência. A loucura sempre foi, em todas as sociedades, uma questão de como a pessoa se relaciona consigo mesma, se relaciona com os outros e, principalmente, como vê o mundo e como por este é vista. Alguém pode ser considerado louco em um determinado contexto, e ser um líder, um xamã, em outro.
O que podemos verificar é que prevalece ainda no Direito uma noção desumanizadora da loucura, fruto do desenvolvimento do racionalismo e do positivismo tão arraigados às ciências desde seu princípio. Nesse processo de desumanização, a loucura torna-se uma entidade, equiparando-se à doença. Ela passa a ter uma vontade que supera a própria vontade humana, deslegitimando o tão discutido princípio filosófico do livre arbítrio.
Embora reputando irresponsável e inimputável o louco, porque tomado por uma entidade não-humana com vontade superior à sua, fazendo-se a punição por essa doença – a medida de segurança. Esse instituto pune a loucura, sob o fundamento de nem sempre ser explícito de a desmascarar, arrancá-la do ser humano. E que, se de resto acaba restringindo a liberdade do portador da doença, por via de um internamento que, se no discurso é não punitivo, na prática lhe arranca a liberdade e a voz.
Isso se deve porque ali onde um desavisado vê uma pessoa privada de liberdade por força de uma medida de segurança, o Direito vê diferente: a loucura seria algo não-humano, e a pessoa portadora da loucura seria um esvaziado hospedeiro, cuja vontade fora sobrepujada. “Na situação extrema o louco não age, mas sim é agido. Quem fala com sua voz, quem anda com suas pernas, quem olha com seus olhos não é ele: é a doença.”, afirma Fuhrer¹, imbuído dessa ideologia ao estudar a medida de segurança.
Nesse sentido, a medida de segurança, mais do que uma defesa social, seria uma paradoxal defesa da pessoa portadora da doença mental contra a sua própria loucura. Ou seja, o objetivo declarado dela seria salvar o louco de sua desumana insensatez, o que não deixa de ser paradoxal.
Baseada na concepção kantiana de pessoa como fim, e não como meio, a cultura ocidental resgatou o conceito de dignidade da pessoa humana, notadamente após a segunda guerra e seus horrores. A Constituição da República Federativa do Brasil, na verdade, o elege como fundamento no seu artigo 5º. O problema é quando se fala em dignidade para os tidos como loucos e psicóticos, no plano tradicional da visão sobre a loucura. Ao tratar da dignidade, os autores buscam sua raiz na autonomia, na sua autodeterminação, sem ser compelido por forças externas. Porém, nada se fala no tocante à autonomia tolhida pelas forças internas.
Sendo assim, é preciso que se construa uma noção de cidadania que não seja externa ao próprio psicótico, que não o exlua a priori por estar além ou aquém da sua própria capacidade enquanto ser humano pleno e diferente, como de resto todos nós somos.
Outro aspecto a ser evidenciado é que, analisando os princípios atinentes ao direito sanitário e neles constituídos os princípios atinentes ao sistema único de saúde, há uma contradição gritante entre a medida de segurança penal e o discurso ideológico que a lastreia, considerando-se que os estabelecimentos onde se cumprem as medidas de segurança são considerados estabelecimentos hospitalares (art. 99 do Código Penal) quando, estranhamente, não integram o sistema único de saúde e sim o penitenciário. Isso significa que não são regidos pelos princípios do SUS (CF art. 196 e seguintes, Leis nº 8080 e 8142/90), mas pelos princípios da execução penal (Lei nº 7210/84).
Notoriamente, não é fácil entender como um penalista e um constitucionalista poderiam harmonizar essa contradição principiológica. Afinal, a instituição do hospital público e a instituição penitenciária são regidas por princípios absurdamente diversos e incongruentes entre si. Portanto, não há como defender que a medida de segurança tem natureza sanitária e não punitiva sem evidenciar a contradição de um “hospital” submetido ao sistema penitenciário, e não ao Sistema Único de Saúde.
 À medida que os estudos da complexamente e humanamente mente do nosso ser evoluem, já é possível dizer que todos apresentamos algum tipo de neurose, mania ou psicose. Isso implica dizer que aquela sua vizinha que passa o dia inteiro na janela é louca, o executivo multimilionário que vive cercado por armários em ternos é louco (e os armários também). Além desses, aqueles que regulam o nosso modo de viver, agir e pensar também são loucos! Vocês são loucos! Eu, o Yam e o Felipe somos loucos, muuuuito loucos! Até aí não necessariamente representa uma ameaça à sociedade, conquanto não haja nenhum Simão Bacamarte com uma Casa Verde, pois essa não comportaria a inúmera demanda de internações sugeridas pelo Alienista.

Trabalho apresentado na disciplina de Psicologia aplicada ao Direito (não falei de nenhum deles durante a apresentação, antes que algum engraçadinho pense nisso hehe)

2 comentários:

  1. pois é, é muito ambicioso esse tal ser humano. Pois o direito não é na verdade a mais ambiciosa tentativa de traduzir e aplicar a justiça? A justiça é algo supostamente perfeito, se foge da medida perfeita não é justo; e o ser humano é justamente o ser mais sabida e notoriamente falível e imperfeito. A missão impossível do jurista é tentar prever todas as situações e exceções, esvair todas as possibilidades, e criar leis positivas por mil artigos que possam ser aplicadas de forma dinâmica e sistemática nos casos concretos trazendo a esse soluções justas. No entanto o direito é aplicado justamente por seres humanos, que ao estudá-lo na verdade aprendem sobre a natureza lacunosa, antinômica e, claro, paradoxal do próprio ser humano.

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  2. Na tentativa de aplicar a lucidez o jurista se depara com a loucura caótica e (des)organizada de um dos maiores quebra cabeças de todos os tempos: o direito.

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